segunda-feira, 24 de dezembro de 2012 3 comentários

In Natura



No quintal da casa de minha avó sempre existiu uma variedade de árvores frutíferas. O almoço era sempre acompanhado de suco de manga, acerola ou jaca. Lembro-me da minha infância subindo na goiabeira e comendo o fruto ainda “de vez”. Nunca gostei da goiaba madura e muito menos do seu suco. 

Finalzinho de tarde, eu ainda pequeno, debaixo da aceroleira pulando para alcançar o fruto e que prazer sentia quando o azedinho da acerola, sempre foi azedinho no quintal de minha avó, aguçava meu paladar.

Chegava da escola e ia correndo comer a minha fruta preferida juntamente com os meus primos.  Ah, que prazer era comer ata, em outras regiões é pinha, e minha avó sempre falava: “menino, cuidado com a roupa que ata da noda”. Só de pensar lembro-me do gostinho da ata. Como eu era feliz e hoje só tenho a saudade.

Muitas vezes fui ladrão, mas valia a pena. Ficava, logo depois do almoço, sentado na calçada do vizinho esperando ele dormir. Quando o seu Zé dava aquela cochilada eu subia no pé e pegava o jambo mais vermelho e como era saboroso. Na outra vizinha eu pulava mesmo era o muro do quintal. Toda tarde ela ia rezar o terço. Enquanto isso eu “pelava” o pé de seriguela. Subia até o galho mais alto, descia e começava a comer na sua sombra.  Que a dona Zuleide não descubra isso.

Sinto o cheirinho da fruta fresca, das folhas. Ouço os sorrisos dos amigos moleques da minha infância. Tudo em seu estado natural, “In Natura”.

Mas os tempos mudaram, ou melhor, não temos mais tempo para aproveitar a vida em seu estado natural.  Nada mais de suco no almoço feito pela avó com as frutas do quintal. Agora só suco em caixinha ou refrigerantes. Uma refeição feita às pressas, o tempo foge.

Quando vou para a faculdade, de manhã cedinho, na parada de ônibus um senhor vende seriguela. Fico com uma louca vontade de comprar “1 litro”. Porém, chega meu ônibus e mais um dia se vai.

 Talvez o mesmo tenha acontecido com a fé. Industrializada como um suquinho em caixa. Com sabor diferente do fruto colhido no alto da árvore. E a cor? Qual o corante usado para dar cor a sua fé? O vermelho Ferrari, talvez. Ou o azul das notas de cem reais? Acredito que nenhuma cor. Os doentes da vista enxergam mal.

Que árvore daria como fruto a fé, a religião?  Que fruto amargado é o dessa árvore. Tão caro é o adubo para que ela floresça. O solo, coração, está pobre de nutrientes. O amor não é mais a chuva que rega o sertão.

Deus tem saudade.

Saudade de quando degustavam da fé sentados no chão ou debaixo de uma árvore.
Saudade dos que a colhiam para desfrutar com o outro o sabor de sorrir.
Saudade dos que semeavam a fé para embelezar o quintal do amigo, do desconhecido.

Deus é fruto colhido no quintal da casa da avó. Ele é à sombra da mangueira. O amarelo do caju. Deus é a comunhão entre os que o provam no gostinho do suco caseiro da vovó.
segunda-feira, 1 de outubro de 2012 0 comentários

Desafinado.


Desafinado sou. Minha irmã tapa os ouvidos todas as vezes que cantarolo pela casa. Sigo a melodia, mas o tom passa longe de existir. Invejo os que cantam por puro dom. Deleito-me na voz suave cantando as poesias cotidianas.

Existe pássaro que canta desafinado?Juro que ainda não o ouvi e duvido que possa existir. O bem-te-vi que canta no meu telhado nunca desafinou e nem mudou a música. Sempre a mesma melodia, sempre o mesmo ritmo e tom. Sem a ousadia de uma improvisação sequer.

Sou desafinado também no discurso. Canto arranjos desconhecidos e desagradáveis. Variando os tons. Altos e Baixos. Gritos e Silêncios. Canto o que sou e com a alma que tenho. Sou o desafino.  

Minha completude não se resume a uma única nota. Não sou apenas um compasso e nem você é. Por vezes caminho vagaroso e lento, como quem tem preguiça em uma segunda-feira. E com uma leve alegria, Allegreto, danço sozinho e me abraço com o vento no meio da semana. Vivo começo e me sentir. “Vivace, Vivace” cantarolo pelos ares da casa. Ao lado minha irmã faz uma careta e tapa novamente os ouvidos me lembrando do quão detestável é o meu cantar.

Mas lembro do velho Tom: “Você com sua música esqueceu do principal, que no peito dos desafinados no fundo do peito bate calado. Que no peito dos desafinados também bate um coração.”

Coral com 200 vozes, segundos antes da apresentação. Olhares atentos no regente. Sabem a letra de có e em que entonação cantar. Começam! Tudo perfeito. Porém estou ao lado e junto começo a canção. Todos param. Pobres coitados! Não sabem que a vida possui seus dissonantes.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012 2 comentários

Sim, minha fé está no Amor.





“Não acredito no inferno”, afirmei. Ela estranhamente me olhava como se eu fosse o próprio diabo no qual tanto admira e perguntou: “E onde está a tua fé?” Sem titubear falei mansamente: “Está no Amor, somente Nele.”

Sim, minha fé está no Amor. Um iludido? Talvez! Mas prefiro essa ilusão que vibrar com a dor, sofrimento e solidão de quem seja. Um gay. Um Ladrão. A prostituta da beira-mar. O político. O evangélico. Entrelaçados pela Imago Dei. Dividindo, em partes iguais, o incondicional amor de Deus.

Sim, minha fé está no Amor. Não em um deus que nega sua essência. “Deus é amor” gritam As Sagradas Escrituras. Nego o deus furioso, ranzinza, idolatrado pelos que tem sede de vingança e um coração petrificado pelo mal.

Sim, minha fé está no Amor. Não em um evangelho que barganha com Deus, que o compra com cheques pré-datados ou em 5x no cartão. Minha fé não se encontra em um evangelho dormente para a dor do próximo e que o deixa morrer vislumbrando um tal inferno.

Sim, minha fé está no Amor. Em um Deus belo, bondoso e cheio de misericórdia. Que faz das minhas lágrimas as suas e que comigo dança até o sol raiar. Em um Deus que se cala para ouvir minha voz e sorri com minhas poesias sem rima. 

Sim, minha fé está no Amor. Na busca por uma igualdade, no fim do preconceito e do racismo. Minha fé está na mão que alimenta, nos dedos que acariciam, na voz que acalenta e no silêncio que cura. 

Sim, minha fé está no Amor. Em um evangelho de inclusão, sem opção sexual, sem cor, sem classe social e escravidão divina. Minha fé está no Amor, sem céu ou inferno. Está em um Deus que salva e não condena. Que é vida e não morte. 

Sim, minha fé está no Amor. Minha fé está em Deus. Minha fé é um Deus que é Amor. Minha fé é o Amor de Deus. Minha fé...
quinta-feira, 19 de julho de 2012 4 comentários

Quadros de um dia.



Cinco e vinte da manhã, toca o despertador, hora de levantar da cama, hora em que olho pela janela do quarto e me encontro com o belo amanhecer. O sol vem nascendo devagar e já posso sentir seu calor e seu brilho reinar no céu azul. 

Nas poucas nuvens, encontro formas, abro um sorriso por imaginar o desenho de Deus na maior nuvem  que cobre o céu. Um encontro com o divino nas primeiras horas de um dia lindo. Um belo quadro pintado em minha janela.

Horas depois, me sinto perdido, sem chão, sem uma explicação para a nova pintura que se apresenta em meus olhos, um quadro que fere a alma, um quadro somente com cores negras. 

Chego ao terminal de ônibus e o pregador com seu megafone anuncia o calor, não do sol que brilha, mas de um suposto inferno que espera a todos. No chão, minguados em suas camas de papelão, velhinhos são ignorados em meio às filas dos que esperam o transporte superlotado.

Uma criança toca minha mão e me olha tristemente; pedindo somente para que eu compre sua pastilha para ajudar sua mãe doente, chega mais outro e diz que é para pagar o aluguel do barraco onde vivem. 

Ao longe, ouço o rugido do jovem pregador, que não fala mais do inferno, prometendo cessar o sofrimento daqueles que se ajoelharem e prosperidade para os que seguirem a Jesus fielmente.

Enquanto espero o ônibus, observo uma criança fumando crack, uma senhora pedindo ajuda para seu esposo deficiente e um jovem alcoolizado.
Sem forças faço a minha oração: “Pai, não tenho sido tua expressão nessas vidas, não tenho sido teu abraço, não tenho sido teu sorriso, teu amor”.

Antes do amém, a multidão me arrasta para dentro do ônibus. Antes do fim do dia, anestesiado, me perco nos meus afazeres. Em casa, relembro das cenas que me entristeceram nesse mesmo dia.

Deitado, decido orar e adormeço. Assustado, acordo e afirmo: “Teu amor, Deus, não é expressado através de mim, não sou digno de ser tua morada”.

O Deus de amor faz morada nos olhares solitários dos que buscam um ombro amigo, se abriga no silêncio das crianças violentadas, chora a lágrima da mãe que carece de pão para alimentar o filho.
domingo, 1 de abril de 2012 5 comentários

Novas rotas e sabores



Mudei. Não consigo acreditar, cegamente, em certas "certezas" como acreditava há 12 anos. Tenho dúvidas! E elas me alimentam na minha caminhada, o meu maná. Deixei de crer em muitas coisas, algumas deixariam qualquer pentecostal de boca aberta, não creio mais e ponto final. Nessa mudança sinto que minha caminhada espiritual é mais sincera, verdadeira. Sem medo algum de ir "queimar no inferno" ou sem qualquer esperança de ser recompensado. Quero viver, quero a beleza e a poesia, quero o prazer, o vinho e a melancolia. Quero a felicidade em cada momento de distração.

Tenho acordado em processo de metamorfose interior intensa. Toda manhã meu corpo está envolto aos requícios do casulo onde meus tecidos teológicos são destruídos de dentro para fora, o que seria de mim sem a histólise. A cada raiar do sol uma nova chance, para um novo vôo. E a cada vôo uma visão do horizonte jamais apreciada, uma nova flor na qual eu pousarei.

 Aventuro-me a cada descoberta. Novas fragrâncias, novos olhares e amores, novas incertezas e temores. Os sabores antigos já não excitam meu paladar, a culinária de outrora já não mata a vivaz fome do meu ser. Quero novos sabores, quero esbaldar-me das frutas afrodisíacas da paz, do amor e do conhecimento, quero o corpo de Cristo. Quero da bebida que embriague a alma de poesia, sensibilidade e ousadia, quero a água viva, quero o sangue de Cristo.

“O homem é aquilo que ele come”. Afirmava Feuerbach.

Mudar o que se come é mudar o homem, voar por novas rotas é torna-se livre. Temos medo da mudança, da metamorfose, tememos a dúvida para nos agarramos à fé. Não creio no deus criador de pássaros enjaulados e que corta suas assas por um simples capricho. Creio no Deus criador dos mais belos pássaros, de suas penas coloridas que se misturam com o azul do céu nos vôos mais distantes. 

O medo de errar o caminho aflige o coração de muitos, não viver tornou-se o caminho mais seguro. O credo de que a rota está traçada cega as curvas que a vida oferece, temem-se as bifurcações, se cegam para as estradas paralelas, assustam-se com os cruzamentos movimentados.

Sem medo de errar sigo para o próximo passo, para novas curvas e vôos. Sem importar o caminho sei que o final será nos Teus braços.
Acordarei saindo de um novo casulo, só a verdade me libertará. 
domingo, 25 de março de 2012 0 comentários

Apenas um Francisco


Barba por fazer, poucas roupas e algumas folhas de papelão que a noite se torna sua cama. Onde estará sua família, casou-se, teve filhos, foi abandonado? Sempre o vejo na sua solidão, talvez pensando na sua mocidade, na garota que amava quando jovem ou na sua cidade natal. Quando me vê sempre me deseja boa tarde ou boa noite. Não conheço sua história. Só sei o seu nome, Seu Francisco.

Cigarro entre os dedos revezando com os goles esporádicos de café. Um olhar vazio que talvez seja a pintura de um coração solitário, uma voz mansa e tímida que demonstra seu sentimento de inferioridade e medo. Nunca olha nos olhos. Penso nas humilhações que tenha passado nesses seus anos de dura vida.

Às vezes o observo escorado ao muro secando as flanelas que são seu ganha pão. Descem dos seus carros os Advogados - defensores da honra, liberdade e o patrimônio de todos; os médicos – em que a ética requer consideração, compaixão e benevolência frente aos seus pacientes; os políticos – pseudos representantes do povo e a pé passa a sociedade cada vez mais egoísta. Somados somos a indiferença, a morte social, somos a marginalização dos que nada podem nos oferecer.

Não tenho realizado nada, também me incluo no círculo dos egoístas, além de observar os seus sinais vitais. Sua temperatura social necessita de calor humano, a frequência cardíaca anda necessitando de força de outros corações bondosos e sua frequência respiratória de ar dos pulmões dos mais fortes.

Não quero me agarrar na esperança das Bem-Aventuranças, nem na utopia de que além-morte o sofrimento acabará. O Reino não é de promessas e sim de ações.

Ouço seu Francisco a nos perguntar:
“Eu tive fome, e vocês me deram de comer? Tive sede, e vocês me deram de beber? Fui estrangeiro, e vocês me acolheram? Necessitei de roupas, e vocês me vestiram? Estive enfermo, e vocês cuidaram de mim?”

Que nossa reposta nunca possa ser: “Francisco, quando te vimos com fome ou com sede ou estrangeiro ou necessitado de roupas ou enfermo, e não te ajudamos?”

Se o nosso próximo tropeçar que estendamos nossas mãos e o levantemos, se o nosso próximo tem fome que compartilhemos o pão, se o nosso próximo está nu que o envolvamos com o manto. Que nossas ações sejam baseadas no amor. Que nos esvaziemos da indiferença e façamos a diferença amando o próximo.
quarta-feira, 21 de março de 2012 0 comentários

Uma reflexão sobre a morte.


“Meu pai, se for possível, afasta de mim este cálice;” (Mt 26:19) Tornou-se o nosso clamor quando nos deparamos com a morte ou com o seu sopro em nossos pensamentos. Fugir de tal reflexão é o mesmo que fugir da vida ou da reflexão sobre o homem.

Elisabeth Kübler-Ross afirma: “Morrer é parte integrante da vida, tão natural e previsível quando nascer”.

Refletir sobre a morte é um repto para a filosofia e também para a teologia. Nós, cristãos, mesmo aceitando uma vida após a morte, ainda a tememos. No campo da teologia tornou-se um problema da Teodicéia. Kierkegaard, teólogo e filósofo, indagou:

“Que divindade é esta, que, tendo criado o ser humano, deixa-o, depois, torna-se comida para os vermes?”

A nossa imagem da morte torna-se a nossa imagem de Deus. O medo da morte, para muitos, é o espelho do Deus punidor, vingativo e que os lançará no inferno.

Vencer a morte não é a nossa jurisdição. Aquele que poderia vencê-la já o fez. Dedicar-se à vida é liberta-se do medo da morte sem esquecer de que ela é intrínseca a condição humana.

Walter Rauschenbusch, em suas Orações por um mundo melhor, me fez chorar ao declarar:

“... somos como crianças, com medo do escuro e do desconhecido, e tememos deixar esta vida que é tão boa, e os nossos amados, que nos são tão queridos. Dá-nos um coração valente para que possamos caminhar por essa estrada com a cabeça levantada e um sorriso no rosto”.

Tempus Fugit - O tempo foge e sempre caminhamos para um fim. A vida e a morte se entrelaçam em nossos lençóis tornando-nos vulneráveis ao amanhecer. O brilho do Sol não mais te aquecerá, o perfume da rosas tu não sentirá, os lábios da tua amada tu não tocarás. - Carpe Diem!

Reflito sobre o que escreveu Rubem Alves: “Somente aqueles que se tornam discípulos da morte sentem a doçura da vida. Quem não é discípulo da morte fica sempre achando que ainda há muito tempo e, com isso, não se dá conta dos morangos que há à beira do abismo. Ele pensa que há um lugar onde se chegar. Não há. Todos os caminhos levam ao mesmo fim. Na vida só há o caminho...”.

Ouço a voz que diz: “segue-me”.
domingo, 18 de março de 2012 0 comentários

"géenna"



Longe dos centros urbanos, à margem de uma sociedade individualista, crianças, adolescentes e adultos se amontoam ao redor de uma nova carrada de lixo. Catam restos de comida que disputam com pássaros, ratos e criações de porcos.

O chorume, líquido natural do apodrecimento da matéria orgânica, escorre com seu odor nauseante e faz companhia as mães amamentando seus filhos.

A solidão de cada olhar, o choro gritante da criança, o sofrimento angustiante da mãe anunciam a morte da esperança. Uma infância perdida. Não sabem jogar bila, as meninas não pulam amarelinha e jamais dançaram ciranda.

No entardecer, o brilho do Sol se confunde com o fogo que queima com a geração do metano, as bactérias metanogênicas não cessam seu trabalho, o fogo jamais se apaga.

onde “o verme não morre, e o fogo jamais se apaga”. (Mc 9:48)

Estão condenados! Condenados por uma sociedade que assaltam sua dignidade e os lançam no “inferno” onde o ranger de dentes ecoam das crianças desnutridas, onde o choro nasce do coração do pai que não vislumbra o fim do sofrimento.

Tornamos-nos naquele que veio para matar, roubar e destruir. Somos demônios torturantes dos nossos próximos. Somos os que alimentam o fogo que os queimam sem piedade.

Abraço-me com o que afirma Marquês de Sade “Não há outro inferno para o homem além da estupidez ou da maldade dos seus semelhantes”.

Não quero perder a fé, não quero torna-me pessimista discípulo de Arthur Schopenhauer. Quero acreditar na salvação dos marginalizados, daqueles açoitados pela religião, dos que pedem um pedaço de pão, dos viciados no crack.

Quero manter a esperança de que ainda somos capazes de transformar os lixões em o Reino de Deus, que somos capazes de reciclar a dignidade humana, de reavivar a beleza escondida em meio à degradação.
sexta-feira, 16 de março de 2012 0 comentários

O diretor e o ator.



Luz, câmera, ação! Grita o diretor no início de mais um dia exaustivo de gravação. Textos para serem decorados, maquiagem e todo um roteiro a ser seguido.

O diretor conversa com o seu ator principal, faz gestos, sinaliza sua posição na cena, o movimenta para a esquerda e para a direita, foca a intensidade da voz em dado momento do texto e o intérprete devota toda a sua atenção.

Toda a história já está escrita, o diretor conhece cada cena, cada pausa e respiração do ator. Sabe de forma antecipada cada expressão do seu rosto. Nada para ele é novidade.

O ator por sua vez se esvazia de si mesmo para encarnar um personagem. Usa técnicas de interpretação para vencer a dificuldade de torna-se outra pessoa, para fingir ser alguém que não é.

Ouve-se um grito no estúdio, a ira do diretor devido a um erro. Todos em silêncio. Para ser um ilustre vencedor da Academy Awards não pode haver tropeço algum.

Admito, sou um péssimo ator. O que não é novidade para muitos que me conhecem.
Porém, não nego a existência de um diretor que me acompanha diariamente.

Diferentemente de Alfred Hitchcock, Martin Scorsese ou Steven Spielberg, o diretor me convida para com ele escrever a história.

A novidade nos apanha a cada cena, a cada diálogo escrito por nossas mãos choramos ou sorrimos. Ele abriu mão de, antecipadamente, conhecer ou criar sozinho o roteiro de minha vida.

Quando erro e tento usar técnicas para ser outra pessoa ele simplesmente me convida para ser eu mesmo.

Não se ouve gritos de ira no estúdio. Somente uma doce voz que me chama para a vida. As câmeras não me filmam com lentes de julgamento, condenação ou humilhação.

Antes, são focadas na beleza, na essência do ser. Se algum defeito as embaçam num piscar de olhos tudo se torna límpido.

Minha esperança vai além de ser indicado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, vai além de uma estatueta e reconhecimento. Devoto minha esperança no fim dos filmes que mostram a miséria, a intolerância e a guerra.
Mais uma cena está prestes a começar, mais um diálogo para ser escrito e o diretor tornou-se ator. Juntos desbravamos o desconhecido.

Ele nos convida a escrevermos um roteiro de vida baseado no amor, na aceitação e no perdão.

Então, pronto para começar a escrever a história?

Até o próximo roteiro!
segunda-feira, 12 de março de 2012 1 comentários

"Grávido"


Tenho vivido momentos angustiantes de dúvidas, incertezas e falta de fé. Às vezes sinto que algo no interior deseja brotar, transbordar e nascer para o mundo. Chego a conclusão que estou “grávido”.

Por vezes me senti estéril como Sara na poesia bíblica. Mas sem a promessa da gravidez na velhice.

Chego ao diagnóstico que minha gestação é de alto risco; Ruptura com o fundamentalismo, infertilidade da fé, má aceitação de verdades absolutas me advertem de um parto doloroso ou que não chegue ao seu fim.

Já sinto os olhares preconceituosos, o peso do julgamento já se torna quase insuportável e vozes que ecoam sobre a paternidade. “Não sabe ao menos quem é o pai” afirmam tais vozes.

Como no relato da “mulher adúltera” também desejam me apedrejar. Assumo a culpa. Nós últimos anos tenho partilhado meus lençóis com homens e mulheres. Afirmo: Não sei quem é o Pai.

Rubem Alves, Harold Kushner, Ricardo Gondim, Florbela Espanca, Cecília Meireles e Gabriel García Márquez são alguns dos que envolveram minhas noites com beleza, poesia e amor.

Dostoiévski, André Comte-Sponville e Albert Camus sitiaram meus entardeceres com torrentosos desejos, segredos e solidão.

Não sei quem é o pai, prefiro o mistério. Todos semearam e alimentarei cada filho com minha vida, dedicação e amor.

Já sinto as dores do parto, a bolsa gestacional estourou e agora sonho com seus nomes: Tolerância, Paz, Amor, Desejo, Mistério, Beleza...

Até a próxima gestação.
terça-feira, 6 de março de 2012 0 comentários

Nesse silêncio que tu em mim causa
Faz brotar uma canção sem fim
Uma semínima, uma breve, uma pausa
Todos os sinais te descrevem em mim

Sou a clave, a nota, sou a fusa
A partitura que tu tocas teu clarim
Tu és o motivo, o tema, e não abstrusa
Será a melodia entoada por meu bandolim

Andante no passo que te beijo
Em nossas bocas nascem os solfejos
Cromáticos o teu corpo conhecer

Andantino cresce o desejo
Allegro por um rebeijo
Vivace o ápice do prazer.
 
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